quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Hoje

Oi mãe, desculpa o sumiço mas vindo de mim esse silêncio já era até o esperado. Agradeço DE NOVO pelo megapresente, viajar por conta pela Itália, nossa, sem palavras. Grazzie Mille, Mama !

Sabe, sei que você sempre questionou essa minha escolha pela antropologia, falou das dificuldades que terei em bancar o padrão de vida com o qual estou acostumada e relutei muito em acreditar que dinheiro significava tanto para você. Eu não lhe contei, mas esse é o primeiro momento em que estou usando seu dinheiro nesta viagem, gastando alguns euros nesta lan house te mandando esse e-mail. Não se preocupe, estou bem ! Guardei um pouco do estágio, queria viver as minhas custas, pelo menos o máximo possível e experimentar a sensação de independencia que buscava com essa viagem, e nós sabemos que não dá pra conseguir isso com o dinheiro dos outros, mesmo daqueles que nos amam.

Mas mãe, sabe, sei que sou a desgarrada e você tem mil motivos pra preferir a Ju que eu – ela demonstra mais afeto que eu, não sou boa em me doar – e aqui na Itália experimentei algo que sequer tinha a noção do significado. Fui “adotada” por um grupo de meninas que trabalham comigo numa loja de sapatos – calma, explico em casa e não, não é um campo de exploração isso aqui – e acabei de voltar de um dos inúmeros almoços que tive o prazer de compartilhar.

Mãe, aqui não é necessário natal nem fim de ano para uma celebração entre parentes. Aqui isso é diário. Há uma cumplicidade na relação dos italianos que nem de longe se compara ao que vivemos.

Essas meninas moram em casas um pouco maiores que meu quarto e essa falta de privacidade, - que aqui não se faz necessária – é o mecanismo de fortalecimento dos laços de todos os integrantes.

Quando penso na nossa casa, vejo que ela ficou ainda maior comparada a dessas meninas, porém, é um espaço grande que serve pra que?

Nós fizemos da nossa condição de classe média-alta um mini-mundo onde casa indivíduo habita um universo particular: eu trancada no meu quarto, com meus amigos, meu banheiro, meu guarda-roupas, meu mundinho girando em torno de mim e você e a mana nos seus respectivos universos, cada uma atarefada demais para exercer essa atividade diária que é importar-se de fato uns com os outros.

Sabe, quando lembro do meu quarto, impossivel não perceber o quão sozinha eu era. Eu tive o luxo de experimentar um tipo de solidão que não se rotula, uma solidão mais sofisticada, uma solidão não percebida que é aquela da qual nós pensamos ser uma benção: a solidão causada pelo excesso de privacidade. Pensei em tantas coisas que não foram compartilhadas e portanto de nada valeram. Tantas conquistas, pequenos vacilos que poderiam ter causado riso a você, sabe, não possuo um dia regado a surpresas, mas existem situaçoes que não haveria melhor platéia que você e a Ju. Estou estupidamente surpresa como nunca reparei o real valor que voces duas tem na minha vida. Voces são eu, eu sou voces, todas, simbióticas e nunca nos demos conta disso.

Vou precisar voltar, está acabando meu intervalo e tem uma cliente que fará uma grande compra, com o dinheiro ganho pretendo comprar teu presente. O da Ju foi a primeira providência que diz ao chegar aqui, mas o presente que quero te dar é essa alegria em descobrir que ainda dá tempo de praticarmos essa palavra que até então mantem-se virgem em nós: compartilhar.

Com muita, muita saudade de vocês

Ana

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

Habeas Corpus

Meu amor, só nós dois sabemos o real valor dessa expressão, amar-se, assim, infinito, um mar. De onde me encontro comprometo minha sanidade com esta carta, afinal, fizemos de nossa intimidade um espetáculo, deixando a terceiros um julgamento que não lhes diz respeito. Cada casal convive com suas regras, e algumas cabe somente a nós o entendimento.

Sei que, como aquela que sofreu a dor dos teus golpes, me confere a atmosfera de vítima e desse papel abdico pois eu sempre soube que a razão do teu comportamento partia de mim, e eu, se me coubesse não aceitar as circunstâncias, deveria ter me afastado, trocado de endereço, ter feito o que cabe aquela que sofre calada e não tem o amparo de uma família que a ame ou amigos que a acolham.

Eu não, eu te instiguei a isso, te doutrinei mentalmente, fiz de você minha cobaia afim de verificar a limitação entre o gostar, o amar e a obsessão. Eu transformei o teu amor em manchetes de quinta categoria, eu te humilhei, ridicularizando sua inteligência e te guiando pra essa barbárie e não há outra versão para essa história, você apenas reagiu igual uma pequena batida no joelho que nos faz levantar a perna. Se existe culpa, assumo, não há nenhuma porcentagem que te compete.

Mesmo que haja algum impedimento legal para o nosso convívio, afinal, não sei que rumo tomou essa nossa última briga, te digo que aqui deste lado existe uma mulher apaixonada, que vê no único gesto de loucura seu, uma fonte inesgotável de ternura e que te ama na mesma proporção que você: um amor arbitrário, cego, não-convencional, louco e recíproco.

Peço que assim que ler esta carta a entregue ao seu advogado, ele está a par de toda situação e saiba que farei o que for ao meu alcance para amenizar os impactos desse nosso desvarios embora por razões médicas estou impedida de ir até o julgamento, portanto, saiba que de daqui deste hospital refaço meus votos contigo e desejo, com toda a sinceridade possível, que você consiga me perdoar e saiba analisar que fui apenas uma idiota que precisava de uma prova do quanto o seu amor por mim era forte. Agora eu já sei o quanto é.

Morrendo de saudades

Cíntia