quinta-feira, 25 de março de 2010

Pacto - parte I

Fui promovida, terminei de ler – e entender, ou o mais perto que chegarei de entender - aquele livro da Clarice Lispector onde ela come uma barata. Ganhei um quadro lindo numa rifa e agora acredito que o número 24, o número do tal bilhete, é um número de sorte. Assisti cerca de cinco filmes maravilhosos, todos indicações da mesma pessoa, um novo amigo de internet que tem sido um ótimo ouvinte. Fui ao meu primeiro show internacional – Coldplay, simplesmente perfeito ! – e descobri que temperos são mais que alho, sal e orégano.


Se algum conhecido meu com um certo grau de intimidade me questionasse o que tenho feito nesses últimos meses, essa seria uma bela resposta. Vivi, diversifiquei, compartilhei, explorei. Não escalei um Himalaia, mas para quem se emociona com propagandas natalinas, não há se ir muito longe para provar, sentir. Quando perguntei ao meu irmão o que tem ocupado seu tempo, notei que a palavra tempo emprego múltiplos sentidos. O que para mim foram meses, para ele não passou de dez minutos, pois o sentimento que o acompanha é o mesmo há meses.

Meu irmão foi rejeitado da pior maneira que eu penso que alguém possa sê-lo: em cima de um altar, com toda a família presente. Posso estar sendo ingênua em acreditar que essa é a pior forma de rejeição, porém, foi a pior que conheci, e só nos fere de verdade aquilo do qual participamos. Sofrimento alheio comove, mas não machuca.E desse eu participei como madrinha. Aquele abandono, apesar de ter sido absorvido pelos 5 irmãos e nossos pais ali presentes, não diminuiu na divisão. Não...ele multiplicou-se, foi uma ausência que ao invés de deixar um buraco, na verdade soterrou-nos. Meu irmão por pouco não morre nessa avalanche.

O requinte da crueldade foi digno – se é pra dizer que tal ato tenha em si algum elemento de dignidade – de cenas de teatro, contos tristes que iniciam os filmes que falam sobre o pior abandono amoroso existente: aquele sem aviso prévio. Quando uma criança é abandonada, ela não tem conhecimento, pais se despedem com alguma antecedência, não há bilhetes na geladeira dizendo “fui comprar cigarros e não voltaremos mais”mas os filhos notam o afastamento, ainda com eles por perto. Mães, pais, irmãos e filhos somem sem aviso por não suportarem o laço que os unem, renunciam covardemente pois entraram em uma atmosfera que não lhe deram escolha. O abandono surge da vontade de livrar-se de um compromisso que moralmente julgamos eternos, e tudo que é eterno, pede zelo, que muitas vezes não queremos ter. Crianças abandonadas acordam em uma manhã, geralmente de sábado, notando a casa vazia, um silêncio que fala, um nada que as fazem amadurecer em segundos porque nada educa mais do que a sensação de desamparo. Porém, quando se estabelece um acordo entre dois adultos que não possuem laços e portanto não há obrigatoriedade de assim fazê-lo, o abandono é acentuado pois não há justificativa para tal humilhação. Bastava, nem que fosse uma hora antes, quebrar a promessa e então, do lado de fora da igreja, cada um seguir sua vida.

Um noivo abandonado no altar é mais humilhante que uma noiva. Digo isso pois uma noiva sabe desde o primeiro momento quando é abandonada, ela não precisa subir os degraus da igreja para, diante do padre, notar-se sozinha. Ela já o sabe, o noivo não está lá. Basta ela pedir para o motorista dirigir até em casa, no caminho ela mesma já desabotoa o vestido, e longe dos olhares penosos ali lançados, sofrer com o mínimo de dignidade. Um noivo, porém, passará pela dúvida, “noivas se atrasam”, e lá vão-se horas em pé, olhando para a porta, esperando o OK do amigo que vigia a entrada, sofrendo delírios onde ele, em vários momentos, pensa que qualquer barulho antecederá a marcha nupcial, porém, é apenas mais um convidado que cansou de ficar sentado e levantou-se, arrastando o banco, causando aquele som que só não ecoa com mais força pela igreja porque todos estão a comentar, em um cochicho baixinho e que logo se alastra, que a demora da noiva só pode ser por um motivo.

Demorou duas horas e quarenta e sete minutos para que meu irmão começasse a chorar, e a medida que seu choro tornou-se mais alto,a ponto desoluçar, os convidados foram se retirando, onde meus pais, tão desolados quanto eles, encaminharam os convidados para o salão principal da igreja, onde aconteceria a festa. Os pais da noiva fingiram ir até a frente da igreja e foram embora, eles realmente conheciam a filha que tinham.

O que se fala a alguém que foi abandonado na presença das pessoas quem mais amam? O que se faz quando essa pessoa é seu irmão? Não há nada a se falar, nada a se fazer, porém algo precisa ser feito. Ainda no altar, ficamos nós sete, abraçados, por cerca de 20 minutos, onde cada um fez a sua prece. Eu pedi por paz, meus irmãos pediram para que a vadia morresse, meu pais pediram para que fôssemos embora. E assim o fizemos.

Fomos todos para o meu apartamento, era o mais perto e mais amplo, onde meu irmão em estado catatônico deixou-se conduzir como se estivesse em direção a uma valeta. Ele não bebeu nada, não comeu nada. Ele sequer dormiu e não quis tirar a roupa de noivo. Eu e minha mãe cuidamos dele como quem cuida de uma criança morta. Tiramos suas roupas, colocamos embaixo do chuveiro, servimos um café e ele não reagia a nada. Ele sequer falava, não rejeitava nada como geralmente as pessoas feridas de alma o fazem. Ele consentia com cada gesto, deixando-se a mercê do que decidíamos. Para ele, tanto fazia o que nós fizéssemos, e assim foi por uma semana, quando houve sua primeira internação.

Passado tres meses, vejo-o entrar por esta porta e fico feliz que ele esteja vivo, provando que sou mais egoísta do que pensei. Eu o queria vivo, independente do quão sofrivel sua existencia fosse a si mesmo, mas família não são chegadas a democracias, ainda mais aquelas que se amam.

Conversamos pouco porque não havia o que falar. Ficamos por duas horas abraçados no sofá, assistindo filmes e comendo pipoca de chocolate que preparei especialmente para ele. Era tudo o que ele precisava: chocolate e um calor familiar. Quando o filme acabou, com um singelo riso no rosto, ele pediu para ir embora, e vendo que ele estava maravilhosamente melhor do que entrou, o permiti sem hesitação. O acompanhei até a porta, onde ele se enfiou em um táxi e saiu, em direção a casa dos meus pais, onde ele está temporariamente hospedado desde o ocorrido. Sozinha no meu partamento, notei que ele esqueceu uma pequena chave, da qual não soube a que fechadura poderia pertencer. Era uma chave pequena, um tanto amarelada e com certeza antiga. Havia detalhes no cabo que denunciavam isso: os detalhes do desenho, o relevo...uma chave bonita, vou guardar para devolver quando ele voltar.

A parede branca do prédio ao lado é formada por alguns pedaços de espelho. Quando um carro passa e a luz do farol os atinge, provocam um espetáculo na parede da frente, que também é branca. Essa cena caleidoscópico serve de atrativo para que toda noite, eu venha admirar a vista da sacada do meu apartamento. Enquanto observo a cena, lembro do que ouvi de minha amiga semana atrás. Ela não acredita em amor. Segundo ela, nunca amou e sempre foi feliz assim. Não que eu não duvide do fato, mas o ponto que não nos fazem seguir pensamentos iguais é a definição de felicidade, que para ela, é a eterna sensação de festa, de calor na pel. Denise é verão o ano inteiro e amor é um encaixe de neuroses, segundo sua filosofia. Não posso negar que nunca a vi triste, não houve homem que a fizesse perder um sábado de verão trancada no apartamento. Sua capacidade de cura é impressionante e ela mesma assume que nunca amou. Denise não é uma adolescente sem experiência e não precisou ser abandonada no altar para ter repúdio ao amor. “É só olhar em volta. Nós escolhemos amar e ficamos pré-dispostos ao amor e criamos essa necessidade. Amor é criação, não existe nada de soberano nisso porque, todos nós sabemos, que só amamos em troca de algo, nem que seja de uma expectativa.”

Denise ama nos fuzilar com seus comentários. E eu adoro ouvi-los, mesmo que não concorde com uma vírgula. Denise é o tipo de amiga que me fascina, porém, somos afastados por esses conceitos que nos movem.

- Vc acredita em amor porque nunca levou um pé na bunda e nunca teve uma fossa.

- Mas vc tbm nunca amou alguém e n acredita tbm!

- Mas eu sou esperta e vc é romantica, o que pra mim é burrice. Olha teu irmão, teus amigos, me diz, quem vc conhece q é feliz a dois?

- Meus pais!

- Ah, vai saber se é amor o que eles sentem e não comodismo?

- Seja o nome que tiver, quero isso que meus pais tem: alguém pra construir uma vida e morrer velhinha.

- Babaca !

- Sabe Denise, no fundo, eu sei que vc n ve a hora de saber que está errada.

- Ahãm, claro, não vejo a hora mesmo. Vou esperar sentada que nem vc, que acha?

Denise adora discutir comigo porque não me rendo aos seus pontos de vista e seus argumentos super bem estruturados mas em um ponto ela tem razão: apesar de acreditar no amor, nunca amei de verdade, assim como ela. Tive meus namoros, meus chorinhos á toa mas meus finais foram sempre tão pacíficos, sofisticados eu diria. Tive dois longos namoros, um de 5 anos e outro de 4 e na ruptura de ambos, não houve os clichês clássicos que finalizam os relacionamentos que testemunhamos. Foi um acordo, embora sempre partisse do outro lado a decisão, a mim restava acatar e seguir em frente, coisa que eu o fazia porque, eu sempre soube, que não amei esses dois homens. Não era amor, era parecido, ou pelo menos parecido com a visão que tenho da coisa. Porém, nestes ultimos tres meses, comecei a revaliar meus conceitos.

Meu irmão amou – ou ama, não sei – aquela mulher de uma forma que positivamente eu invejava, queria que um homem me desejasse como meu irmao desejava aquela mulher. Era algo primitivo, era um querer inocente, e por ser inocente, impossível de frear. “Pra vida toda.” Ele repetia sempre essas palavras quando falava dela.

Ana 25/03/2010

quinta-feira, 4 de março de 2010

Retalhos

A autenticidade dos meus sentimentos consiste em saber discernir que amei minhas pluraridades. O mais comum é encenarmos um personagem em prol da conquista, e em pequenas doses acrescentarmos nossa personalidade ao papel até que ela ocupe todo o lugar daquilo que inventamos. Isso explica estranheza com que casais que já tenham suas bodas costumam tratar-se. O comum, infelizmente, é tratar o parceiro sem afeto, tal qual tratamos qualquer um que cruze nosso caminho em direção a este parque. Respeita-se o espaço, aliás, um espaço enorme onde a indiferença se instala.

Porém, as minhas personagens se mantiveram, cada uma carrega sua frustração onde a circunstancia me faz reavê-los no limbo, mergulhando na atmosfera encenada para ressurgir aquele amor que condiz ao que me traz saudade.

Se a escassez sentimental me bate, recordo do Caio e a terça-parte que se resume nossa história. Se a serenidade me cansa, recordo do Fernando e nossas brigas diárias. Se desejo uma arrebatação, me torno a recordar as fotos de Régis. Se prossegue mais do que desejado essa insatisfação, releio meus diários, onde cada face obteve seu registro, documentado para suprir a ausência física daqueles que me educaram para o amor promíscuo.

Se me mantenho solteira, eu sei, é para amar a todos esses homens sem amarras nem compromissos. Porém, até entre os fantasmas há ciúmes, e os torno a amar um de cada vez. Viraram minha bengala, quando na verdade não há a menor necessidade de apoio. Eu bem que poderia me casar com um Márcio qualquer, ou um Rafael igualzinho este que me corteja há semanas. Eu posso, mas não quero. O amor correspondido nunca fez nada de bom para mim, por mais que tenham contribuído para a construção do meu caráter.

Talvez seja isso, meus amores me fizeram o que sou, e falta amor a mim mesma. Dei a estes três homens em especial um amor total, porque não há a menor diferença entre amor próprio e a paixão. Me doei até ficar murcha, e murcha, sinto falta do combustível que me tornava uma heroína, pois amar sem medo é digno de heróis que não tibuteiam em jogar-se a morte. É isso: ver-me covarde e com medo me impede de amar alguém novo, alguém que eu não possa antever os gestos, pois todos os três homens que eu amei eu os tinha na palma da minha mão. Eu sempre soube que eles me acompanhariam por muito tempo, desrrtulando-os de qualquer somatória de tempo que costuma-se dar para justificar as importâncias.

Acompanhei, pela soleira da porta, minha neta contabilizando seus amores pela passagem de tempo que cada um permaneceu fisicamente ao seu lado. É um método falho por não ser sincero. Não há inglória naquilo que não veio a duras penas. A gratuidade com que se ama tende a sumir na medida em que impusemos retorno. Antes, quando o meu coração era inabitado, me lembro da irradiação que Teodoro me provocava. Não o considero meu primeiro amor, mas foi ele quem inaugurou o sentimento em mim, talvez aquecendo minha alma para a acolhida de Francisco, que deu-se nove anos mais tarde.

O fato é que Teodoro jamais apresentou-se a mim sem a fachada do companheirismo próprio de crianças que cursavam o primeiro ginasial. Dediquei-lhe lindos corações naquele que foi meu primeiro diário, onde secretamente repousava no meio as iniciais C e T, atravessados por uma flecha.

Era um amor fotossintético: eu, uma flor, ele o sol. Eu girava o dia inteiro afim de me alimentar do seu calor. Ele mantinha sua distância. E isso bastava.