terça-feira, 11 de maio de 2010

carta 27 - parte 1

Peço desculpas pela voz rouca, se eu pudesse eu lhe escreveria, mas o avanço da doença  me impossibilita disso. Lembro - e lembra me é custoso que só eu sei - que foi em um dia claro, porém chuvoso, que notei que não havia firmeza no meu pulso e ele se partiu. A minha última palavra escrita foi "viver", o que soou totalmente contraditório ao que aconteceu. No segundo seguinte ao meu gemido de dor e a ouvir o som cristalino da caneta que rolou para baixo da cama eu morri, pois o que me motivava a viver era o meu desejo de ver esta história chegar aos seus olhos pois sempre tivemos um melhor entendimento pelas palavras, já que as falas, que foram escassas, se contradiziam ao que nos unia. Ou une, eu não sei, ja que não tenho notícias suas há mais de trinta anos e trinta anos não foi tempo suficiente pra te esquecer, apenas no máximo deslocou dos holofotes esse sentimento que carrego contigo, aquele primeiro, bom, e não são variantes, que voce pode acompanhar pelos meus diários.
Imagino seu constrangimento em ouvir essa voz cansada e velha, eu mesma não me reconheço com esse timbre, cansa falar no mesmo ritmo do pensamento, eu sintetizo antes de falar e esqueço, eu mesma não me reconheço, assim como ainda não reconheço de ter feito o que fiz: tornei público meu único segredo e aguardei até o último instante e morrerei esperançosa, aceita de minha irrealização e consiente do que arrisquei, e te digo, não houve risco algum, nem acertos e erros. Houve apenas fatos que não podem s classificar a mesquinhas dos nossos princípios. Não há do que se envergonhar, Francisco, e nao há lamúrias a serem feitas. Precisei renunciar a muita coisa para prosseguir com essa gravação e nunca uma renúncia foi feita com tamanha alegria, logo eu, que nunca suportei perder, aprendi que perder é processo de maturidade.
Não tenho o menor esboço de qual está sendo sua reação a tudo isso, mas peço zelo da sua parte. Não testemunhei amor maior do que este que tenho por ti, esse amor que alimenta-se dele mesmo, que nada pede, que não mediu nem se enquadrou em tudo que li e pense que fosse amar e por ser imensurável, intraduzível, soube que é amor. Te amo além de mim mesma e com toda a fúria e encanto da descoberta e com todo o amadurecimento e a saudade do fim. Não fim do amor, esse perdurou, s desgarrou de mim e segue, meu corpo que não o acompanha mais.

Cecília  19/11/1999

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