terça-feira, 12 de janeiro de 2010

Primeira parte - Parte um

O barulho ritmíco dos pingos batendo no telhado acompanhados pela sensação de frescor se destoam completamente do I kiss the girl que ecoa pelo apartamento. Ao perceber que minha filha não respeitou o sono sagrado do sábado que tanto prezo, vejo, como que por reflexo, que não me tornei o pai que prometi ser quando senti pela primeira vez chutá-la com violência a barriga de Abigail. Quando o som furioso adolescente por fim termina e o banheiro finalmente é desocupado, decido que farei a barba – esta mesma que me acompanha desde sempre – e o farei rápido para não perder a reação de minha esposa que sairá pontualmente as 10:00. Enquanto brinco com o aparelho de barba, desenhando formas nos pêlos que me acompanharam há mais de 20 anos – não são os mesmos pêlos, óbvio, mas a sombra que produzem no meu rosto é ancestral – fico pensando se de fato, tenho minhas obrigações com Abigail por encerradas.


Sou marido, pai, filho, amigo, amante. Será isso o suprassumo do que ela espera de mim? Ela não espera de mim um desafio, não anseia pela hora de eu começar a chegar tarde em casa, de ela passar-se por situações de ambiguidade, dúvidas? Sou pra ela todo esse porto seguro indigno de qualquer suspeita?

- Droga! O pequeno corte jorra um sague vermelho um tanto branqueado, já reconheci meu sangue mais intenso, vivo, de um vermelho que me identificava mais que meu próprio rosto. Ao limpar com papel higiênico, tentei lembrar da última vez que o vi. Foi no aniversário de Abigail, de uma data jurássica, onde eu cortei meu pé próximo ao calcanhar em um caco de vidro que sobrou do pote de pepinos que ela arremessou em minha direção na noite anterior. Eu não lembro o motivo, mas sei que o mereci, e melhor, que deveria ter me acertado em cheio, um pote daquela estrutura causaria alguma sequela, tenho certeza. Eu queria vê-la arrependida já que nunca a vi, eu desejava vê-la sem reação. Eu a desejava somente ao avesso: que sua vontade de me ter cessasse. Eu desejava, naquele instante, um repúdio que ela não demonstrava e assim como fazem os casais que se amam, ela brigava, me exigia algo que eu não dava sequer a intenção de dar. Eu não queria sexo naquela noite, eu não queria dormir com ela e não trazia nenhuma mágoa recente para justificar, apenas não queria seu corpo próximo ao meu.

Abigail, vaidosa e com todo o direito de ser, não suportava meus períodos de inverno. Aquela mulher era verão o tempo inteiro, calor na pele, lingua sem freio, destemida. Mulher de áries, cabeça-dura, cabeça linda, com seus fios camomila descendo pelos ombros, finos como uma teia.

Como uma teia...

- Amor, tô atrasada. Sua voz vinha da cozinha, devo ter me passado no banho mesmo já que ela acordou e preparou todo o café, enquanto ainda estou aqui, analisando a forma que o sangue toma ao coagular-se. Rapidamente finalizei a barba revelando um rosto branco, meus olhos se destacaram e senti que de certa forma aparentei estar bem mais moço. Acompanhando o impulso de ver meu rosto mais jovem, tomei um banho rápido e frio, a fim de recuperar o viço da pele. O band-aid no lugar do corte me deu um ar aventureiro. Ri de mim mesmo: cortar o rosto foi minha maior aventura em meses.

Abri a porta do banheiro onde Abigail, inquieta como sempre e não pelo atraso, entrou rapidamente e olhando a sujeira que fiz na pia, voltou e me puxou pelos ombros, já que eu estava de costas. Meu olhar cabisbaixo e envergonhado por não antever sua reação alimentou seu olhar de desejo: ela passou as mãos pela minha pele do rosto desnudada e me beijou profundamente, primeiro o lábio inferior, depois o superior. Por fim, ambos. Seu desejo por mim foi transmitido pela boca, onde reagi em perfeita sincronia e nossas peles se colaram. Eu, nu, e ela de camisola, entramos no box do banheiro e ela, usando uma das mãos, ligou o chuveiro, onde ela não imaginava que jorraria uma água fria. Ri timidamente do seu espanto e ela riu de si mesma.

- Ficou lindo...Disse ela, ao mesmo tempo em que retirava a camisola, revelando-se mais linda do que imaginava. Há meses eu não enxergava Abigail além dos meus olhos acostumados e creio que o mesmo se aplicava a mim. Entre um corte e um jato de água fria surgiu felicidade. Ali vi que amar não é um sentimento de certezas, se ama nos intervalos e minhas dúvidas sobre Abigail escorreram pelo ralo da pia.

Nós não fizemos amor mas eu o queria e ela também, deixamos esse desejo em fogo-brando já que realmente ela estava atrasada. Esperei ela vestir-se e ainda nu, sentado na ponta da cama, com as mãos cobrindo meu pênis, fiquei admirando-a enquanto se vestia. Calcinha, sutiã...por fim o vestido. Como eu queria tirar-lhe a roupa, jogá-la naquela cama umedecida com a água que não sequei do meu corpo e fazê-la rir da nossa pequena traquinagem...

Enquanto ela colocava os brincos, olhando-se no espelho, notei que eu estava com um riso sincero no rosto. Quando ela se virou e me viu, sentado, como um menino tímido contemplando uma mulher, ela abandonou o brinco que tentava pôr e veio em minha direção. Sentou no meu colo e não importou-se com minha pele úmida, e me beijou, segurando meu rosto liso ao mesmo tempo que meus braços a entrelaçavam.

- Preciso. Ir. Agora! E entre uma palavra e outra, Abigail me dava um beijo, igual quando fazíamos na época em que namorávamos no carro, às escondidas. As despedidas sempre foram minha parte preferida, pra tudo. Os arremates me interessavam mais que o desenrolar da trama em si, os pontos de chegada, os pontos de repousos.

Mas estes três beijos não eram finais: era a deixa para o que ocorreria mais tarde, sem pressa. Não foi somente meu rosto que rejuvenesceu, meu casamento voltou 20 anos atrás e a ausencia da barba foi meu álibi para forçá-la a ver-me como antes, mesmo que não tenha sido minha intenção primária. E os beijos intercalados que ela me deu agora tinham a mesma serventia. Serviam para me dizer que ainda há uma Abigail que amo.

Com a mente totalmente varrida de qualquer lembrança – atribuo isso ao estado pleno de felicidade - , me vesti e tomei meu café. Deixei dinheiro para a empregada fazer as compras, acrescentei alguns itens na lista e saí munido apenas de carteira e celular. Era tudo que precisava para hoje.

Quando estava com os dois pés fora de minha calçada, passo a mão no rosto e me recordo: estou sem barba. Senti uma fisgada no estômago e quis, naquele momento, que todo mundo que conheço me visse agora. Já imaginaria os resultados: meio mundo adoraria, outra metade detestaria. Assim como tudo, alguns abraçam o novo e outros enterram os pés no velho. Até hoje pela manhã, eu me enquadrava no segundo grupo. A rotina representava a plenitude, sempre me pareceu o melhor terreno para fazer planos. O descontrole era o meu inferno pessoal.

Caminhei e dei uma volta na quadra afim de reconhecimento. Na verdade, eu quis apenas caminhar, pegar sol na cara, talvez comprar o jornal, não sei ao certo. Saí parcialmente sem rumo, aguardando algo novo que sei que não aconteceria. Eu não sabia o que fazer com essa felicidade que caiu no meu colo pela manhã. Me senti bobo, coisa de guri com a primeira namorada.

Lembrei de Abigail nua no banheiro. Maliciei com a cena e logo senti o incômodo da ereção. Fui caminhando em direção ao muro de uma grande loja que não estava aberta e sem cerimonia ajeitei meu pênis na cueca. Há tantas desvantagens femininas – mestruação, tpm, gravidez, etc – mas são males que as afligem com horários, elas tem a oportunidade de prevenirem. Eis aqui a desvantagem masculina: a ereção. Primeiramente porque quando ela acontece, é notável – alguns mais, outros menos – é espontânea e nem sempre acontece por excitação. Lembro que Abigail adorava me constranger em público quanto a isso: beijava-me os lóbulos da orelha, pescoço, passava a mão na minha virilha somente para vê-lo crescer. Logo após alcançar o objetivo, me deixava literalmente na mão. Ela ria do meu constrangimento mas a verdade é que isso era uma injeção em sua autoestima. E eu me virava como podia, colocando moletons na cintura, andar meio incurvado – o que mais tornava óbvio do que disfarçava, mas eu não percebia – e quando a situação permitia, me masturbava.

- Porque voce gosta de fazer isso comigo? Perguntava eu, entre a ingenuidade e a safadeza, no auge dos 17 anos.

- Porque gosto de te deixar querendo mais...Respondia, com o riso mais sacana que já vi na vida. Quando ela ria daquela forma, eu sabia: game over, Francisco. O jogo acabou, pelo menos para ela. E ainda complementava:

- Adoro essa carinha de cachorro pidão....e me beijava, e muitas vezes recomeçava o processo, o que eu adorava e odiava ao mesmo tempo, brincadeira que me enlouquecia e me mostrava a realidade: é ela quem comanda nossa relação. Eu obedeço e cedo. Ela inciava e finalizava. E eu que me contentasse. E eu sempre me contento...

O sol que prometia um calor massante foi logo se apagando, como uma lanterna com pilha fraca. Olho para o céu: nuvens carregadas e sinto a premeditação do vento forte que virá.

Temporal. Preciso ir para casa. Me apresso e passo por uma banca de revista que não vi quando realizei o percurso de ida. Há 20 metros do edifício onde, apartir de ontem, comecei a morar, compro o jornal e vejo a data: 27 de outubro. Primeiro dia de escorpião, começo do meu inferno astral.

Assim como tarô, búzios e simpatias, nunca acreditei em horóscopo. Mas conheci alguém que acreditava e absorvi desta mulher alguns fragmentos dessa ciencia. Ela é de escorpiao.

- Sou seu inferno astral, que pena né? Foi uma das primeiras frases que ouvi-la dizer.